por Bruno Cava – Benito Mussolini é o convidado de honra da Mostra Futurista de 1917. Recebido na galeria pelos artistas em roupas estilizadas, agradece ao aplauso associando-o ao ratatá das metralhadoras. Corre alucinado pela exposição e os correligionários se esforçam por segui-lo. Olha para uma tela e dispara: bum-bum-bum! Para outra, gesticula raivosamente. Súbito, uma das mulheres levanta a saia e lhe expõe o sexo. Mussolini desvencilha-se dos seguidores, tranca-se com ela num quarto e então percebe que se trata de sua ex-amante, Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno). Rejeita-a, sai num rompante do quarto e da galeria, para espanto de todos.
O Mussolini de Marco Bellocchio, em Vincere [2009; em cartaz no Brasil], é um homem todo ele feito de ação. Não há tempo ou espaço para hesitação, contemplação ou interioridade. Seja transando, marchando ou duelando, extravasa uma energia em estado bruto. “A inatividade é morte.” Não fala por palavras, senão palavras-de-ordem. Não tem bandeiras, senão a sua – a bandeira preta. Seu objetivo é vazio: pura vontade de poder que quer sempre ir além: mais rápido, mais alto, mais forte. Mussolini golpeia furiosamente contra a história e estilhaça-lhe o continuum, para inaugurar um novo tempo – o seu. Como uma granada, como uma transa brutal, como uma tela futurista.
Pouco importam os meios, menos ainda os fins. Mussolini é ateu e crente, socialista e fascista, amor e ódio – ele é tudo e ao mesmo tempo nada. O que vale é escalar as colunas de pedra em direção ao céu de trevas, onde se fará Deus. Assim, o tumulto social e a guerra aguçam-lhe o senso de oportunidade. “A guerra é a higiene do mundo”. Concede-lhe a chance de exercitar a sua virtú – mescla de maquiavelismo pragmático e nietzschismo vulcânico – e arrebatar o poder. Entretanto, longe de produzir vida, trata-se de uma ideologia voltada à morte, à destruição, ao nada. Ética do niilismo e antivitalismo revolucionário, traduzida politicamente em estado totalitário, tanatopolítica e estética da destruição.
A primeira metade do filme acompanha a jornada titânica de Mussolini, interpretado por Filippo Timi. Em cortes secos, num ritmo ziguezagueante de sonho, a narrativa salta anos para ilustrar o militante em reuniões de partido, passeatas, conflitos de rua, nos jornais. Mas também ao conquistar e amar vigorosamente Ida. Que, assim como a Itália, termina por dar-lhe tudo, inclusive o patrimônio. As irrupções de letreiros enormes e a trilha operística dão a conotação grandiloqüente do fascismo.
Na segunda metade, Mussolini chegou ao cume do poder e se transformou por completo num simulacro midiático. Renascido após quase morrer na Primeira Guerra, o homem se alia à monarquia e à igreja. O que se dá na seqüência da enfermaria, quando é exibido um filme no teto para os feridos acamados. Ali, após a benção do rei, mira para a tela e identifica-se com Jesus Cristo, como metáfora da ascensão do personagem físico a ícone midiático. E assim, torna-se a corporificação do fascismo – pródigo no aparato de propaganda, nos cinejornais cultuadores da personalidade, na estetização da política tão presente, nas artes, no movimento futurista de Filippo Marinetti.
Natural, portanto, que o ator saia de cena, substituído por imagens documentais de arquivo do ditador. É o momento da separação dos amantes, de Ida rejeitada e internada num hospício de freiras. O fascismo trata as ameaças como insetos e as esmaga em suas mãos de aço. Aos derrotados, o sanatório, a cadeia, o campo de concentração. Ida tenta recuperar o amor do ditador de todas as formas, mas não percebe que não existe mais. Migrou para a dimensão mítica dos soberanos do século 20.
Casamento ousado de melodrama e ópera, Vincere é a melhor surpresa do cinema italiano dos últimos anos. E incontornavelmente oportuno nestes tempos de governos fascistóides pela Europa, que fazem de Mussolini a farsa de sua política e sua estética.
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